A ASAE fecha, em média, um restaurante por dia, por falta de condições. A Renascença acompanhou uma ronda da ASAE pelos restaurantes do Porto, que acabou com dois processos-crime e um restaurante fechado.
Dentro de uma inspecção da ASAE: o lado invisível dos restaurantes
“Muito boa tarde. Inspector Sousa e Silva, da ASAE. Vamos proceder a uma inspecção do estabelecimento”. A entrada da equipa da Autoridade da Segurança Alimentar e Económica num restaurante do centro do Porto ocorre logo depois da hora de almoço.
O dono fica visivelmente nervoso com a presença dos dois inspectores. Mas responde cordialmente: “Façam favor”. De seguida, em jeito de aviso, descai-se. “Sabe que a esta hora isto está tudo de pantanas”.
Sousa e Silva, vendo a preocupação do proprietário, garante que vai saber separar aquilo que é resultado do trabalho para os almoços que acabaram de ser servidos e o que é fruto do descuido e negligência. “É a melhor hora”, garante.
A sala comprida, com três ou quatro mesas preenchidas, fica para trás, Sousa e Silva e a colega Alexandra Teiga passam um longo balcão onde se vêem ainda os restos das refeições e passam uma porta castanha com uma pequena janela a meio. A cozinha fica à mercê dos olhos dos inspectores.
A visão não é o sentido inicialmente sugestionado. A primeira golfada de ar é pesada e parece trazer fritos agarrados. Uma olhadela pelas paredes permite encontrar vários avisos ligados a higiene. Num papel protegido por um plástico cheio de gordura, lê-se que “o óleo da fritura deve ser renovado regularmente”.
O inspector Sousa e Silva pára junto ao exaustor por cima dos fornos industriais. Põe o dedo e dispara: “Isto está muito mau”. A mão negra de óleo é a imagem das palavras. Ele quer que o empresário sinta o que ele sentiu.
“Passe lá o dedo para ver como isto está”, insiste. “Está sujeito a ter aqui um incêndio”, avisa.
Com a voz trémula, o dono do restaurante tenta amenizar: “Vamos já tratar disso.” Foi só a primeira vez que o disse. A cada reparo dos inspectores, respondia de um fôlego que ia resolver tudo.
O voluntarismo no caso do exaustor é travado pelo elemento da ASAE. “Não vai fazer isso agora, tem a comida por baixo.”
Rachas e um verde negro muito estranho
Mais uns passos, uma olhadela para o chão e nova paragem. “Este pavimento está bastante degradado”, diz Sousa e Silva. “Ainda vai ser limpo”, responde o empresário. “Não é a sujidade, tem rachas”, riposta o inspector.
Perante as primeiras observações dos fiscalizadores, o dono defende-se com o número de anos do prédio em que funciona o restaurante e promete mudanças para breve. Anuncia obras para os próximos dias.
Os inspectores avançam para a zona do armazém. Um olhar de relance sobre o tecto mostra uma humidade galopante onde a tinta foi substituída por musgo. O verde e o negro estão a ganhar cada vez mais terreno ao branco.
No chão, as batatas estão numa bacia junto à zona onde se lava as mãos. As gavetas têm utensílios desarrumados e sujos. Os armários têm a marca da antiguidade gravada a ferrugem ou a falta de limpeza.
A atenção do inspector Sousa e Silva vai para o armazenamento dos alimentos. “Isto está aqui uma desorganização muito grande. Não pode ter os legumes e os tentáculos de pota tudo junto, ainda para mais sem que estejam tapados ou cobertos com filme”, explica.
O proprietário atribui a culpa aos empregados, que não separam bem os produtos nem os protegem convenientemente. Mas garante que a falta de tampas detectada será suprida. “Vou comprar já uns 50 tupperwares para aqui. E é já”, sublinha.
Cada armário ou gaveta apresenta uma inconformidade com a lei. A limpeza não é um dos fortes da casa. “Ai ai ai, você vai ter aqui muito trabalho. Olhe para este armário, já não é limpo há imenso tempo. Olhe para estas prateleiras, isto tem que ser limpo, está cheio de gordura.”
Diga-me o que fazer… eu faço já
A desarrumação e desorganização são também prato do dia. O proprietário começa a ficar cada vez mais receoso com o que poderá ser o desfecho da operação da ASAE. A cada reparo volta a garantir que resolverá a situação imediatamente.
“Você diga-me o que é para fazer que faço imediatamente. Chamo já os homens [das obras]”, diz. Um pedido: não fechem o restaurante.
“E as luvas? Não as pode ter aqui. Este buraco tem de o tapar. Você tem umas instalações muito antigas, tem de ter cuidado.” O inspector continua a enumerar problemas. O dono culpa os funcionários: “Este pessoal…”. Sousa e Silva dá-lhe um remoque: “O pessoal não, você.”
A sucessão de sujidade, desarrumação e degradação leva a um desabafo do inspector. “As instalações de um operador do ramo alimentar têm de estar limpas e em boas condições. Isto está em condições deploráveis”, diz, enquanto olha para um garrafão dentro de uma arca.
Não me dão um sítio? Só por seis ou oito meses
Apercebendo-se de que as mudanças que terá de fazer não serão apenas de pormenor, o proprietário do restaurante começa a tentar negociar com os inspectores para que haja tempo para mudar. Sem sucesso.
“O senhor vai ter aqui muito trabalho”, anuncia Sousa e Silva.
“E não me dão um espaço para mudar para outro lado?”, pergunta o proprietário.
“Não”, diz o funcionário da ASAE.
“Para pôr tudo em ordem, dar uma pintadela”, insiste o empresário. “Mais seis ou oito mesitos”, acrescenta, quase em tom de súplica.
“Mais meio ano, oito meses com estas condições? Nãaaaao”, dizem, em uníssono, os dois inspectores.
O empresário ainda volta a tentar uma ajuda, mas Sousa e Silva muda de assunto. O destino já está traçado. O espaço está no limite de poder constituir perigo para a saúde pública. A falta de condições do restaurante não deu outra solução aos inspectores da ASAE.
“Bem, vamos ter de suspender isto”, atira o fiscalizador. Mais de uma hora depois do início, aquela acção termina com a suspensão da restauração daquele estabelecimento do centro do Porto, que fica confinado à venda de bebidas.
O dono, visivelmente agastado e nervoso, terá de reabilitar o espaço para poder voltar a abrir. O tempo de fecho será igual ao tempo das reparações.
Um restaurante encerrado por dia
A fiscalização a este restaurante foi uma das 100 realizadas pela ASAE no Grande Porto. A operação de larga escala “Porto à Vista”, que envolveu 30 agentes, tinha como objectivo fiscalizar vários agentes económicos em zonas turísticas.
O inspector-geral da ASAE, Pedro Portugal Gaspar, acompanhou esta inspecção e reconhece que a área alimentar tem tido maior atenção da autoridade que lidera. A razão é simples: “Representa um perigo mais imediato para o consumidor.” Por isso, desde 2014 que todos os anos, dos 40 mil a 41 mil agentes económicos fiscalizados, mais de metade (a rondar os 25 mil) são da área da restauração.
Nos últimos dois anos, segundo dados oficiais, em média a ASAE tem fechado um restaurante por dia.
Os números podem ser desanimadores para muitos sobre a qualidade dos restaurantes: em cada dez estabelecimentos alvo de uma inspecção dois ou três não estão em condições de ter as portas abertas. No entanto, o líder da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, José Manuel Esteves, tem outras contas.
Não divide o número de fiscalizações pelo número de suspensões, mas coloca o número total de restaurantes no dividendo. O resultado final é logo outro: “Em 80 mil que existem em Portugal, estamos a falar de zero vírgula não sei quantos por cento. É mais do que sermos campeões do mundo.”
O programa “Pesadelo na Cozinha”, da TVI, levou a que os portugueses acordassem para o mundo das cozinhas dos restaurantes. As imagens foram chocantes, puseram mais pressão sobre a ASAE. Portugal Gaspar reconhece-o, mas avança que as pessoas só viram aquilo que os inspectores já viam há muito. No entanto, garante que aquela realidade é uma parte do universo, não o universo da restauração por inteiro.
“Aquilo também é a realidade, mas não aborda o resto da realidade. A maioria é cumpridora”, reflecte.
Cuidado com a farinha
É o caso da Presa Doce, em pleno Campo 24 de Agosto, no centro do Porto. A pastelaria é pela primeira vez alvo de uma acção da ASAE. António Reis, que recebe os inspectores, é um dos três sócios da casa que labora há mais de dez anos. Por fora, o aspecto é impecável.
A entrada na zona invisível ao cliente e uma primeira vista de olhos confirma a primeira impressão. A farinha pelo chão é sinal de que a última cozedura do pão terminou. O inspector Sousa e Silva está satisfeito com o que vê.
“À excepção de uma farinha que pode ter caído, está limpo. Já laboraram hoje de manhã, não chegámos aqui de manhã com tudo limpinho”, explica o fiscalizador.
Enquanto os pasteleiros lavam as máquinas em que o pão foi amassado, os inspectores passam a pente fino todos os armários e zonas de arrumação. Mesmo com o bom aspecto geral há sempre coisas a corrigir.
“Este [armário] aqui precisa de limpeza. Não têm vindo cá higienizar”, diz Sousa e Silva. António garante que é limpo de oito em oito dias. “Então tem que intensificar. Se fica assim de oito em oito dias, tem de passar a fazê-lo duas ou três vezes por semana”, enfatiza.
O gerente do Presa Doce conta ao inspector que tem para aquele dia duas intervenções agendadas, uma delas na estufa. “Veja aqui nos papéis que não estou a mentir”. Sousa e Silva confirma.
Sou multado, mas até agradeço
A pastelaria serve “snacks” ao almoço. A cozinheira, que não tem mãos a medir, trabalha num espaço muito reduzido. É ali que Sousa e Silva vê o maior problema estrutural no espaço, a falta de acesso à zona de lavagem de mãos.
“Isto não é uma banca, é uma zona de higienização. Não pode estar assim. Não pode ter aqui na banca alface e tomate e estar a lavar as mãos ao mesmo tempo, imagine que cai detergente para lá. Isto tem de ser alterado”, determina o inspector.
Mais tarde, Sousa e Silva vai dizer que aquele é um espaço com boas condições e muito acima da média do que costuma ver nas operações da ASAE. “Organização o senhor tem.”
Os reparos do inspector foram alertas para o dono da Presa Doce. A limpeza das farinhas mais ressequidas será uma prioridade. “Terá que ser. As funcionárias até ouviram e se tenho uma senhora para fazer a limpeza todos os dias à tarde é para isso mesmo. Não se justifica”, adverte António Reis.
Apesar de acabar por ser autuado por incumprimento de requisitos de higiene, António Reis até agradece esta acção, que lhe dá margem para exigir mais aos funcionários.
“Numa situação normal, chamo a atenção e eles não prestam atenção. Se for lesado, até fico contente, que é para eles saberem que a ASAE actua a qualquer momento. E isso é bom.”